A Terra, a Palavra e o Caminho: Um Livro, um Movimento

Hoje é um momento muito importante e sensível para mim: o lançamento do meu livro Para Além do Conflito Violento Durante a Luta pela Terra: Memórias e Experiências de Vida de Migrantes de Xinguara (1970–1989).

Digo que é um momento sensível porque este livro não nasceu apenas de leituras acadêmicas ou da exigência de uma titulação. Não apenas isso. Ele nasceu da convivência diária, da escuta das memórias narradas em meio a conversas informais, dos gestos que não cabem em palavras. É fruto de observações que venho tentando entender e que se iniciaram fora dos espaços acadêmicos. Aquelas memórias que resistiram não nos documentos, mas nas vozes, nos corpos, nos afetos que presenciei daqueles que viveram.

Vínculo pessoal, formação acadêmica e quando a experiência vira fonte

Este livro é importante para mim porque, além de me representar como pesquisadora, me representa também como mulher que cresceu entre essas histórias. Xinguara não é apenas um lugar de pesquisa. É um território de afeto familiar, um chão de onde brotaram muitas vidas — inclusive a minha. Poder lançar este livro e compartilhar com vocês tudo o que ouvi, senti e escrevi ao longo dos anos que vivi em Xinguara é, para mim, mais do que uma entrega acadêmica. É um gesto de reconhecimento e de retorno.

Eu cresci ouvindo histórias sobre a vida dos migrantes no sul do Pará. Meus pais, meus irmãos, meus vizinhos — todos construíram suas vidas a partir do trabalho da terra. Essas memórias sempre estiveram presentes, mesmo quando não eram ditas em voz alta.

Entretanto, foi durante o mestrado em História, na UNIFESSPA, que pude olhar para essas histórias com mais profundidade, com mais escuta e mais compromisso. Nesse período, percebi que aquelas experiências vividas por migrantes, que até então faziam parte do meu cotidiano, eram também fontes históricas legítimas, potentes e, muitas vezes, negligenciadas.

A pesquisa que deu origem a este livro foi construída no diálogo com essas memórias: memórias de homens e mulheres que chegaram a Xinguara entre as décadas de 1970 e 1980, em busca de terra, de dignidade, de um recomeço. Eles vinham de diferentes regiões do Brasil, atravessavam estradas longas, abriam casas na mata, construíam seus lotes com o próprio corpo. E foi justamente na escuta dessas narrativas — contadas com pausas, com silêncios, às vezes com lágrimas — que entendi o quanto há de força, de complexidade e de humanidade nesse processo de migração e sobrevivência.

Foi também nesse percurso que compreendi que a luta pela terra não se deu apenas nas manchetes dos jornais ou nos marcos da violência institucional. Ela se deu, sobretudo, no dia a dia das famílias que precisaram inventar modos de vida possíveis diante da ausência de garantias. Famílias que plantaram sem terra, que trabalharam sem salário fixo, que criaram filhos longe da terra natal e, ainda assim, seguiram em frente.

No livro, trabalho com entrevistas, documentos, textos memorialistas e vídeos institucionais para escutar o que foi vivido — e nem sempre registrado. São memórias que não cabem apenas na narrativa da violência. Há, sim, o conflito. Mas há também o silêncio, o cansaço, o trabalho, a esperança e os pequenos gestos de fazer e refazer a vida todos os dias.

A escolha por olhar para esses fragmentos de experiência veio de uma inquietação pessoal, mas também teórica. No campo da história cultural, a gente aprende a prestar atenção não só aos grandes eventos, mas aos sentidos que as pessoas constroem sobre o que vivem — àquilo que elas lembram, como lembram e por que lembram.

E foi isso que me orientou ao longo da pesquisa: ouvir o que está nas margens, o que não está nos documentos oficiais, mas está vivo na fala e no corpo de quem viveu

Xinguara e o sul do Pará formam uma região marcada por muitas disputas, mas também por muitos silenciamentos. Ao caminhar por essa cidade, ao conversar com pessoas que fizeram parte da sua construção, fui percebendo que havia memórias que ainda não tinham encontrado um lugar para serem contadas.

E, talvez, o que o livro tenta fazer seja justamente isso: abrir um espaço para essas memórias respirarem.

O livro está organizado em três capítulos.

No primeiro capítulo discuto os meios de lembrar a violência durante a luta pela terra. Nele, procurei evidenciar as narrativas orais, os registros acadêmicos e outros aparatos mnemônicos que mantêm viva essa memória. Um dos trechos que considero ilustrativo diz assim:

“A memória dos migrantes mantém uma relação com o passado violento da cidade e suas experiências de vida estão entrelaçadas a esses eventos, cruciais para a construção da identidade da geração dos anos 1970 e 1980.” (p. 25)

Essa citação expressa bem o que tentei construir nesse capítulo: posicionar as narrativas orais dos migrantes não como registros isolados, mas como parte de um emaranhado de dispositivos mnemônicos — disputas, apagamentos, reafirmações — que envolvem também os textos acadêmicos, os marcos públicos e os discursos institucionais sobre a violência e a luta pela terra.

A intenção aqui foi justamente essa: mostrar como a memória das experiências de vida dos migrantes se entrelaça às memórias da violência, compondo uma identidade coletiva marcada por perdas e resistências.

Ao lado de outras formas de lembrar, essas narrativas orais carregam uma força própria. E é justamente por isso que devem ser lidas como formas legítimas de conhecimento histórico.

No entanto, reconheço que essa compreensão talvez não tenha ficado plenamente clara no momento da escrita. Os limites de tempo e a necessidade de concluir a dissertação em um período curto exigiram uma escrita mais apressada, que às vezes não deu conta de aprofundar tudo o que eu intuía naquele momento. Ainda assim, essa tentativa de escuta permanece como eixo fundamental do capítulo — e é algo que procuro refletir sempre que volto ao texto.

No segundo capítulo, discuto as idealizações do ambiente natural e as disputas de memória em torno do passado da cidade.

Um dos trechos centrais diz:

“As memórias dos migrantes estão delineadas por lembranças que exaltam e idealizam a natureza. São memórias da mata, do rio, dos animais e da terra.” (p. 152)

Esse capítulo parte da percepção de que a natureza ocupa um lugar muito significativo na memória dos migrantes. A terra é lembrada com encantamento. A floresta, os rios, os bichos, o verde intenso — tudo aparece nas falas com uma força simbólica que vai além do ambiente físico.

Para muitas pessoas que migraram para Xinguara, chegar à região representou o encontro com algo novo, bonito, promissor. Era como se ali estivesse uma nova chance de vida. E a natureza participava dessa promessa.

Mas essas idealizações não surgem do nada. O capítulo mostra que essa maneira de lembrar o ambiente natural se articula com um imaginário mais amplo sobre a Amazônia. Um imaginário que, como mostram autores como Carvalho (1998), Gondim (1994) e Pizarro (2012), associa a floresta ora ao paraíso, ora ao inferno verde. Esse mesmo imaginário — presente nas crônicas coloniais e nos discursos desenvolvimentistas do século XX — aparece reconfigurado nas memórias dos migrantes.

Há um exemplo de que gosto muito, o da senhora MG, que descreve seu primeiro contato com o rio Água Fria:

“Ah! Eu fiquei encantada! Foi a primeira vez que fiquei em contato com a natureza. O rio correndo entre a mata fechada. Os pássaros voando e cantarolando sobre as nossas cabeças. Araras nas copas do babaçu…” (p. 149)

Relatos como esse ajudam a pensar a memória não apenas como uma lembrança individual, mas como uma construção social, atravessada por discursos coletivos sobre o valor simbólico da natureza.

No entanto, ao lado dessas memórias de encantamento, surgem também marcas de perda e destruição: as queimadas, o desmatamento, o avanço do agronegócio, a terra exausta.

Essa convivência entre fascínio e devastação, entre promessa e ruína, me levou a olhar com mais atenção para a própria forma como pensamos e nos relacionamos com a natureza.

Foi nesse ponto que minha pesquisa começou a se aproximar de questões mais amplas sobre ontologias e formas de vida. Ao perceber que essa relação com a natureza não era neutra nem universal — mas muito próxima do pensamento ocidental que separa sujeito e objeto, humano e não humano — comecei a buscar outras referências.

E foi assim que me aproximei das epistemologias indígenas, das ontologias relacionais e das perspectivas pós-antropocêntricas, que hoje orientam meu projeto de pesquisa para o doutorado.

Nesse capítulo, o que busquei foi mostrar que as idealizações da natureza, embora profundamente afetivas, também são políticas. Elas fazem parte das disputas por sentido sobre o que é a terra, quem pode falar sobre ela e como ela é lembrada.

Ao escutar essas memórias, compreendi que a natureza não é apenas cenário — ela também é sujeito, é memória, é campo de disputa simbólica e material. E foi essa escuta que transformou não só a minha pesquisa, mas também a minha forma de estar no mundo..

No último capítulo, mergulho no cotidiano, nas estratégias de sobrevivência e nas adversidades que marcaram a vida dos migrantes em Xinguara.

Um dos trechos resume isso com força:

“A vida e o trabalho se confundiam. A vida dedicada ao trabalho pode ter provocado uma associação entre trabalho, sofrimento e o tempo vivido.” (p. 26)

Mas essa confusão entre vida e trabalho não é apenas uma sobreposição prática. Ao longo da pesquisa, fui compreendendo que aquilo que os migrantes narram como “vida-trabalho” constitui, na verdade, uma categoria de sentido. A vida-trabalho é um modo de organizar a experiência que mobiliza ações, escolhas, afetos. Ela estrutura o tempo, os vínculos familiares, os objetivos de longo prazo. Não se trata apenas de trabalhar para sobreviver. Trata-se de projetar — no trabalho — um caminho. Um futuro. Uma possibilidade de conquistar coisas, de garantir o amanhã dos filhos, de deixar uma herança simbólica e material.

A memória dessa vida-trabalho aparece como um eixo que organiza muitas das narrativas dos migrantes. Eles falam da roça, da queimada, da plantação — mas também da casa construída, do lote conquistado, da moto comprada, dos filhos formados. São ações do passado que ganham sentido porque produziram resultados visíveis no presente. Essa lógica projetiva do trabalho — trabalhar hoje para ter alguma coisa amanhã — é parte essencial da identidade migrante, especialmente entre aqueles que chegaram ao sul do Pará nas décadas de 1970 e 1980.

Esse capítulo é muito especial para mim. Porque vi, ouvi, senti e vivi muito do que está expresso nele ainda na infância. Meus pais, meus irmãos, amigos, vizinhos — todos viveram esse cotidiano. Essa experiência deixou marcas no corpo e na memória. E é por isso que esse livro me comove profundamente. São memórias que resistem. Que se recusam a desaparecer. São histórias inscritas no solo, nos gestos de quem trabalhou, criou filhos, fincou raízes — e, mesmo diante de tanto, não desistiu.

Com o tempo, percebi que essa vivência também podia se transformar em objeto de pesquisa. Foi isso que me moveu a seguir pela História — não apenas como disciplina acadêmica, mas como possibilidade de escuta. Ao estudar essas memórias, percebi que o conhecimento científico pode — e deve — dialogar com a vida. Escrever este livro foi, então, mais do que um exercício teórico: foi um gesto de retorno. Um modo de dizer que essas histórias têm valor. Que merecem ser contadas. Que não cabem no silêncio.

Mas preciso reconhecer que esse envolvimento afetivo, tão importante para dar densidade ao trabalho, também trouxe desafios. Durante a escrita do mestrado, e mesmo agora, cada vez que retorno ao texto, lido com lembranças de pessoas queridas que já se foram — como meu pai e meu irmão, por exemplo. Reencontro histórias que fazem parte da minha vida familiar. E, por mais que a pesquisa tenha me fortalecido em muitos sentidos, ela também me traz memórias dolorosas. Em alguns momentos, a nostalgia e o vínculo afetivo tornaram difícil o trabalho de distanciamento que a pesquisa exige.

Foi por isso que, ao iniciar a escrita do projeto de doutorado, decidi seguir minha trajetória acadêmica investigando outras fontes e outros espaços — sem, no entanto, abandonar o campo de pesquisa que me constitui. Ainda estudo as relações entre memória, natureza e cotidiano, mas agora buscando outros modos de pensar esses vínculos. A especialização em “Animais e Sociedade”, realizada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, foi um ponto de inflexão nesse percurso. Ela me permitiu ampliar o olhar e incorporar novas referências teóricas, como as epistemologias indígenas, as ontologias relacionais e as abordagens pós-antropocêntricas.

Essa transição representa, para mim, um desdobramento — não uma ruptura. Continuo atenta às disputas de memória, aos modos de narrar o passado, à presença da natureza como agente nas experiências humanas. Mas agora faço isso dialogando com outros regimes de historicidade, outras cosmologias, outros sujeitos. De certa forma, sigo falando do que me move — mas de um lugar onde a escuta pode acontecer com mais fôlego. E, talvez, com mais cuidado.

Esse livro não é apenas um produto acadêmico. Ele é um gesto de reconhecimento, de escuta e de restituição. É uma tentativa de trazer à tona experiências que não entraram para os arquivos oficiais, mas que resistem nas falas, nos corpos e nos afetos de quem viveu.

Para Além…

Ao final desses três capítulos, o que fica é a tentativa de olhar para além do conflito violento. Esse título não nega a importância da violência na história do sul do Pará — pelo contrário, reconhece sua centralidade. Mas busca também abrir espaço para outras formas de experiência que coexistiram com o conflito: o trabalho, a memória, a relação com a natureza, o esforço cotidiano de seguir em frente, mesmo em meio à escassez, à dor e ao esquecimento.

Também reconheço os limites dessa escuta. Escrever esse livro no tempo da dissertação exigiu escolhas, cortes, sínteses. Nem tudo foi dito como eu gostaria. Alguns conceitos, parágrafos e ideias poderiam, sim, ter sido mais bem trabalhados. Algumas tensões mereciam mais aprofundamento.

E houve ainda um tempo que me marcou profundamente: a pandemia de COVID-19. Esse trabalho foi escrito em meio às aulas remotas, ao isolamento, à insegurança constante. Todos os dias, as notícias traziam nomes conhecidos que haviam adoecido ou morrido. A escrita aconteceu entre perdas — uma delas muito profunda: a morte do meu irmão, que me desestabilizou emocionalmente e fez tudo ao redor parecer mais frágil.

Escrever, nesse contexto, foi também um exercício de luto. A memória que se lê no livro não está apenas nas fontes; ela está também nas pausas da escrita entre um parágrafo e outro, nos dias difíceis, no esforço de seguir mesmo com o coração em pedaços.

Ainda assim, eu não vejo esses limites como falhas — vejo como parte do processo. Escrever é sempre um exercício de exposição, e também de humildade. Por isso, recebo as críticas que o livro possa gerar como parte da construção coletiva do conhecimento. Elas não invalidam o que foi feito. Pelo contrário: apontam caminhos para continuar pensando, ampliando, escutando.

Para Além do Conflito Violento é um livro que se posiciona nesse entrelugar: entre a memória e a história, entre a dor e a resistência, entre o vivido e o pensado.

Ele não fecha conclusões. Ele convida ao diálogo.
E é nesse convite que encerro essa apresentação, com o desejo de que mais pesquisas, mais escutas e mais vozes possam se somar à construção de outras narrativas sobre o sul do Pará.

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