Texto apresentado à disciplina Animias, Qualidade de Vida Envelhecimento e Morte ministrada do curso Animais e Sociedade/ICS Universidade de Lisboa, PT, minstrada pelo professor Dr. Ricardo R. Santos.

A Saúde Planetária propõe uma abordagem integrada entre saúde humana e a a presenvação do planeta. No entanto, à medida que procuramos compreender a formulação desse conceito, nos deparamos com algumas limitações. Embora a Saúde Planetária promova a interdependência da humanidade com o meio ambiente, essa visão ainda sustenta que precisamos proteger o meio ambiente para o bem da sociedade humana (Johnson et al. 2024).
Posto dessa forma, estamos diante de uma perspectiva antropocêntrica e problemática, especialmente na medida em que coloca a saúde e o bem-estar humano como o objetivo final da Saúde Planetária. A ironia deste raciocínio é que a natureza passa a ser percebida como nada mais do que um recurso para consumo, desde que sua degradação não coloque em risco os interesses humanos.
Além disso, abordagens mais tradicionais em saúde planetária ignoram a justiça interespecífica. Esta é uma ideologia em que os direitos humanos vêm antes de qualquer outro tipo de justiça e limita os outros seres vivos das suas reais necessidades, inclusive o direito à saúde. Johnson et al. (2024) descrevem a exclusão do não humano como um obstáculo ao desenvolvimento de políticas ambientais mais justas, ao transformar outras formas de vida em matérias-primas para o uso humano. Essa postura dificulta a criação de pensamentos éticos que incluam outras espécies na esfera dos direitos.
De outra forma, algo que soa alarmante nesta concepção é a falta de atenção à importância desempenhada pelos micro-organismos. Muitos debates descrevem esses organismos como vilões ou ignoram suas contribuições essenciais para a saúde global. Conforme Johnson et al. (2024), os componentes do microbioma humano são indispensáveis para funções básicas, incluindo digestão e imunidade, e precisam ser incorporados a um modelo de ecossistema bem definido. Mas esse reducionismo privilegia as formas de vida carismáticas e visíveis em detrimento das interações que ocorrem dentro dos sistemas de vida invisíveis.
Por outro lado, esse conceito não consegue transcender a hegemonia ideológica que isola e ignora há séculos o conhecimento mantido por comunidades e nações tradicionais. Johnson et al. (2024) enfatizam a necessidade de descolonizar a pesquisa, levar a sério o conhecimento local e os estilos de vida daqueles que atuam e sentem as interdependências na vida cotidiana.
A imposição de modelos ocidentais de saúde humana e ambiental lança uma sombra sobre o conhecimento ancestral que pode fortalecer as injustiças ecológicas e sociais. Reivindicar e mobilizar esse conhecimento seria uma mudança importante, porque estabeleceria os padrões de Saúde Planetária com base na humanidade e não apenas no pensamento científico hegemônico, criando espaço para diversas epistemologias.
A governança da Saúde Planetária é provavelmente um dos maiores desafios na aplicação adequada das formulações desse conceito. Novos mecanismos para a governança ambiental foram propostos (Whitmee et al., 2015), mas até agora nenhuma alternativa clara e significativa surgiu para enfrentar as ameaças das mudanças climáticas e suas consequências sobre a saúde. Isso limita a relevância dos setores de saúde humana e ambiental, que só terão sucesso se ambos operarem de maneira integrada.
As estratégias da governança são limitadas pela separação desses domínios, bem como pela ausência de planejamento de longo prazo e pela incapacidade de tomar decisões eficazes diante da incerteza científica. Em segundo lugar, se focar exclusivamente na saúde humana, pode-se colocar em risco a alocação de recursos para o meio ambiente e como consequência minar esforços sustentáveis para as erações futuras e toda a vida na Terra. Whitmee et al. (2015) fazem um apelo por uma ciência transdisciplinar que interligue saúde e ecologia.
Um caminho chave para a governança ter seus mecanismos eficazes talvez seja redefinir a noção de Saúde Planetária à luz da Etnografia Multiespécies. Esse campo de estudo oferece as bases para se pensar a saúde de forma que abranja todos os seres que moldam os processos ecológicos. Isso, então, demandaria uma reavaliação das epistemologias, da política e da governança, que entende a vida não como uma forma corpórea humana, mas sim em termos de uma série de encontros coletivos entre o humano e o não-humano: entre o vivo e o não-vivo, e entre o orgânico e o inorgânico (van Dooren,
Kirksey & Münster, 2016).
Uma segunda estratégia deriva da etnografia pós-humanista como uma forma de desestabilizar a orientação antropocêntrica da Saúde Planetária (Hamilton & Taylor, 2017). Para restaurar e respeitar a agência de múltiplas formas de vida, esses autores sugerem uma epistemologia diferente que mantém o ser humano não como ponto de partida para a ciência e política. Acredita-se que essa visão deve motivar a imaginação a redesenhar a Saúde Planetária como uma verdadeira empreitada interespecífica e pós-humanista, em que a justiça não seja exclusivamente humana, mas que inclua outros seres e modos de existência.
Embora este seja um paradigma forte e forneça uma estrutura coesa para enfrentar desafios globais, a Saúde Planetária apresenta falhas conceituais que impedem uma série de mudanças sistêmicas e transformadoras. Ela enfatiza uma visão antropocêntrica ao priorizar a saúde humana e desconsiderar a justiça interespecífica e o conhecimento tradicional, o que reforça um entendimento instrumental da natureza.
A etnografia pós-humanista nos instiga a ir além das dicotomias e a cultivar relações mais justas e equitativas. É assim que podemos começar a criar o modelo de governança inclusiva sobre nosso ambiente que valoriza todas as formas de vida em nosso planeta.
Referências:
HAMILTON, L.; TAYLOR, N. Ethnography after Humanism: Power, Politics and Method
in Multi-Species Research. Palgrave Macmillan, 2017.
JOHNSON, Kira L.; GISLASON, Maya K.; SILVA, Diego S.; SMITH, Maxwell J.;
BUSE, Chris. Advancing planetary health through interspecies justice: A rapid review.
Challenges, v. 15, n. 1, p. 315-333, 2024..
VAN DOOREN, T.; KIRKSEY, E.; MÜNSTER, U. Multispecies studies: Cultivating arts
of attentiveness. Environmental Humanities, v. 8, n. 1, p. 1-23, 2016.
WHITMEE, S. et al. Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: Report of The
Rockefeller Foundation–Lancet Commission on planetary health. The Lancet, v. 386, n.
10007, p. 1973-2028, 2015.